Sobre uma suposta misogínia no Seminário de Mondonhedo

Por José-Martinho Montero Santalha

 

O livro Dino Pacio Lindín, o guía dunha vangarda cultural (editado em 2021 por Gráficas Lar, de Viveiro, e coordinado por Manuel Rivas García) reúne um conjunto de 16 trabalhos sobre a figura, para mim tão querida e inesquecível, de Dom Digno. Todos os artigos aí publicados mostram a admiração, o agradecimento e a honra que também lhe reservamos no nosso coração todos (ou, mais exactamente, quase todos) os que fomos seus alunos. (Quase todos, porque, tudo há que dizê-lo, também houve alguns que não se sentiram comprendidos e bem tratados por ele).

Entre os artigos da colectânea encontra-se um («Dino Pacio, un agromador de cambio e de esperanza»: pp. 245-247) de Manuel Salgado Blanco, engenheiro agrónomo, que conheceu a D. Digno pela amizade que seus pais estabeleceram com ele quando eram professores no Instituto Laboral de Mondonhedo. Nesse artigo o autor relata-nos as relações afectuosas que a família manteve com ele ao longo de todos estes anos desde então: lembranças e palavras que lemos com plena simpatía.

Mas há no artigo um parágrafo que me doeu. Não só porque contém algum elemento não totalmente exacto, mas sobretudo porque faz alguma afirmação que, ademais de inexacta, parece-me injusta para a honra do Seminário e da formação que nele recebemos. É o seguinte:

 

“El [D. Digno] foi quen invitou a Hortensia, a primeira muller en dar unha charla no daquelas hiper misóxino seminario”. (p. 246).

 

Manuel Salgado Blanco faz referência aí a uma “charla” de sua mãe no Seminário. Como ele, nascido em Gijón em 1960, era ainda mui neno nessa altura, refere naturalmente o que os pais lhe terão contado. Eu sim estive presente e quero contar a minha lembrança de aquela intervenção de sua mãe (e de seu pai). Também, não quero deixar de advertir que, como passou tanto tempo (uns 60 anos) desde então, poderia ser que a minha memória não seja já totalmente de fiar em todos os pormenores… Quiçá outros seminaristas que também estiveram presentes aquele dia poderão rectificar ou confirmar as minhas lembranças.

 

Uma mulher conferencista no Seminário

Em primeiro lugar, penso que não é exacta a afirmação de que foi a primeira vez que uma mulher falou no Seminário de Mondonhedo (já prescindindo do feito, como logo explico, de que não falou para todo o Seminário nem num local aberto a todos, mas só para um reduzido grupo da comunidade de filósofos). Ainda que vagamente, lembro que durante os tempos prévios ou imediatos ao começo do Concílio Vaticano II (1962-65), entre as várias pessoas que passaram pelo Seminário com esse motivo, deu-nos uma conferência, esta vez sim para todo o Seminário no salão de actos comum, uma mulher que fazia parte de alguma comissão relacionada com a preparação do Concílio, talvez no campo da imprensa ou da informação ou da Acção Católica.

De resto, que não fossem falar ao Seminário mulheres, antes que dever-se a uma atitude de misogínia, teria mais que ver com o feito de que, infelizmente, não havia então muitas mulheres conferencistas ou professoras, como é bem conhecido.

 

A suposta misogínia

Afirmação não só inexacta mas gravemente injusta considero a de que o Seminário de Mondonhedo era “daquelas hiper misóxino”.

Pelo contrário, nunca vi no Seminário de Mondonhedo o menor assomo de misogínia. Nos oito anos (1957-1965) que passei em Lourençá e Mondonhedo, e nos centos de classes, homilias, conferências ou charlas de toda a espécie, não recordo ter ouvido nem uma só vez a mais ténue afirmação que escondesse nenhum tipo de desprezo para a mulher. Para a figura da mulher não lembro outra atitude que a do respeito e o afecto.

Mulheres eram as mães de todos nós, e as irmãs com que muitos convivíamos na família, mulher era a Virgem Maria das nossas devoções, estampas e versos, mulheres eram as que em Mondonhedo levavam tanto a administração alimentícia como a preparação da nossa comida e nos serviam todos os dias, mulheres as vizinhas que com admirável responsabilidade nos lavavam e cosiam a roupa… Quando nos visitavam mulheres da família ou vizinhas (no meu caso pelo menos sempre numerosas, pois meu pai organizava periodicamente uma excursão colectiva a Mondonhedo desde a minha parróquia nativa) percorriam todas as estâncias do Seminário sem que ninguém opusesse o menor reparo a essa presença feminina, maioritariamente juvenil. Recordo também as rapazas rurais que D. Digno trazia ao Seminário para receber alguma formação, às quais alguns dávamos classe de diversas matérias escolares.

Como é sabido, infelizmente uma certa misogínia, ou pelo menos infravaloração ou menosprezo da mulher, estava presente em bastantes âmbitos na sociedade, portanto fora do Seminário  –e ainda hoje se podem ver casos… Não seria, pois, de admirar que algo desse sentimento aflorasse também por vezes em comentários ou bromas dentro do Seminário; mas, em geral, a formação do Seminário estava livre também desses (e de outros) preconceitos.

 

A presença do matrimónio Hortensia Blanco e José Maria Salgado

Indo mais precisamente à alusão histórica de Blanco Salgado, lembro assim o caso.

Convidados por D. Digno, um dia vieram marido e mulher (ambos juntamente; portanto, não só a mulher) à comunidade de filósofos, que Digno dirigia, no espaço que chamávamos o “fogar”, em que nos reuníamos habitualmente. Era um mais de tantos actos que se organizavam constantemente, de mui diversa índole. A assistência a este tipo de actos era sempre livre, e por isso variável: havia alguns alunos que assistíamos sistematicamente, outros só algumas vezes, e alguns muito raramente. Neste caso, se a memória não me atraiçoa, coincidiu que um dos três cursos tinha no dia seguinte um exame, de maneira que quedaram estudando e não acudiram. De qualquer modo, lembro bem que os assistentes éramos poucos.

Se a memória me é fiel, o conferencista previsto e convidado era (e foi realmente) o professor Salgado, para falar-nos da sua visão do mundo rural galego (um tema que constituiu sempre uma das maiores preocupações de D. Digno). Como veio acompanhado da mulher, depois da sua intervenção D. Digno perguntou à professora Hortensia se queria dizer algo, e aí foi a sua intervenção, não prevista e portanto ocasional. Pelo que podemos deduzir do testemunho do filho, deveu de ficar gravada satisfactoriamente na memória experiencial da mãe.

 

A intervenção do professor José María Salgado

Falou, pois, primeiramente o marido, José María Salgado López, e creio recordar que nos disse que era veterinário, ou essa foi a impressão que me quedou, de maneira que me ficou a ideia  –falsa, como se vê–  de que, dado que naquela altura a maioria dos veterinários na Galiza procediam de León (porque não havia ainda estudos de Veterinária na Galiza, e o centro mais próximo era León) o matrimónio era leonês. Pelo contrário, o filho informa-nos no seu artigo que o pai era navarro e a mãe asturiana.

O professor Salgado falou-nos da importância que devia ter para o desenvolvimento da Galiza a explotação agropecuária, vista a facilidade do campo galego para produzir herva: disse   –salvo confusão da minha memória, insisto–  que sentia ser veterinário para poder fazer essa afrmação “con más fuerza” (lembrança literal), pois podia soar como afirmação professionalmente interessada.

 

A intervenção da professora Hortensia Blanco

Falou depois a mulher, a professora Hortensia Blanco Ramos. Pelo que vejo em Internet na imprensa histórica (disponivel em Galiciana) era licenciada em Ciências Químicas e no Instituto Laboral mindoniense professora “del ciclo de Ciencias de la Naturaleza” (El Progreso, 13 de outubro de 1962, p. 7). Não lembro bem de que tratou exactamente; creio que foi uma conversa informal e genérica sobre formação ou educação. Só uma afirmação sim recordo: que não havia maldade em admirar a beleza de uma rapaza… Surpreendeu-nos que o tom com que dizia isso (para nós tão óbvio desde sempre como podia ser admirar a beleza de uma flor ou de uma paisagem) era como se nos estivesse a dizer algo que nos ia resultar novo…

Em geral, ficou-nos uma medíocre impressão da sua actuação, porque parecia falar-nos com um tom de superioridade que não deixava de resultar-nos ingenuamente ridículo: depois de tantos anos de formação, de convivência fraterna e de estudo no Seminário, a maioria dos assistentes tinham seguramente uma formação humana e intelectual que não seria inferior à que ela recebera. Recordo também que, comentando depois o que acontecera, Digno pediu-nos que desculpássemos aquela intervenção algo desafortunada, justificando-a na amizade que tinha com o matrimónio.

Não quisera, com este recordo, diminuir os méritos e valores que haveria na professora Hortensia Blanco. Devia de ser uma mulher activa e intrépida, pois na imprensa da época aparecem várias intervenções suas, alguma como directora do Instituto Laboral de Vilalva, em tempos posteriores à sua estadia em Mondonhedo. É possível que nesta opinião que pelo menos a alguns nos quedou sobre a sua intervenção no Seminário tenha influído, talvez algo inconscientemente, um certo sentimento de superioridade que se respirava no Seminário a respeito do Instituto Laboral, de recente fundação, pois esse sentimento estendia-se igualmente aos seus professores, alguns deles de fora da Galiza.

Em resumo, o que pretendi fazer ver é que a intervenção da professora Hortensia Blanco no Seminário está longe de ter nem o sentido nem a importância que lhe atribui o seu filho, nem significou nenhuma ruptura de uma inexistente misogínia.

 

A função clorofílica

Houve ainda outra actuação do professor José María Salgado no Seminário. Um dia ofereceu-se a Dom José García Cascudo, professor de História Natural, para vir à sua classe projectar-nos umas diapositivas que ele tinha sobre a função clorofílica das plantas. Nós já tínhamos bem estudada a função clorofílica, claramente explicada por D. José Cascudo, magnífico didacta, que ademais completava diariamente as suas classes com a projecção de imagens e fotos. Na sua humildade D. José aceitou o oferecimento do professor Salgado e anunciou-nos previamente que tal dia ia vir. Veio, pois, e projectou as suas diapositivas (que eram efectivamente formosas e didácticas), ao mesmo tempo que intentava explicar, bastante envurulhado, a função clorofílica.

Não nos quedou, pois, tampouco boa impressão das suas qualidades como professor; depois lembrávamos com algo de ironia uma expressão que repetiu insistemente ao longo da sua explicação: “aquí precisamente”…

 

Concluindo

Concluindo sinto que quiçá os meus recordos de aqueles acontecimentos, tal como ressurgiram na minha memória com a leitura do artigo de Salgado Blanco, são demasiado negativos. E temo que a injusta acusação de misogínia contribuísse a dar-lhes um tom despectivo que seria igualmente injusto. Se é assim, apresento sinceras excusas. Na verdade, aqueles acontecimentos foram uma experiência mais no desenvolvimento da nossa vida seminarística, rica de experiências formativas.

 

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